Imagem: Robert Flynt
terça-feira, 17 de abril de 2007
segunda-feira, 2 de abril de 2007
Os meninos podiam ter o mundo

Os meninos podiam ter o mundo, mas não era o bastante. Haviam, antes, de ter a si mesmos. Isso fodia com o dia deles todos, porque não eram meninos que gostavam de pensar, de refletir, de olhar para dentro. Se olhavam para dentro, era para um dentro já quase fora, aquele dentro que dá até vergonha de dizer fazer parte de alguma essência, de tão - como dizer? - de tão ralo o suco que se extrai desse pontinho minúsculo de fruto.
Precisavam sair dali, daquela zona de conforto entre o desespero e a morte. Era uma sensação de anestesia tão latente, que os meninos já não voltavam mais para casa. Perambulavam pelas ruas da cidade e se metiam em becos e vielas que pareciam pertencer a um universo paralelo, a um universo do qual eles não queriam fazer parte. Mas faziam. A sensação de ser metido no meio de um universo de insanidade era mesmo de enlouquecer qualquer um, até mesmo aqueles dois meninos que já haviam visto de tudo em 16 anos de vida. Dezesseis um, treze o outro.
Mas como escapar da solidão quando já não se tem nem mãe nem pai? nem tutor, nem porra nenhuma? Não parecia haver escapatória: a derradeira mordida já se anunciava nas pequenas coisas de cada dia.
Quando o menino mais velho parou no meio da favela, o mais novo não entendeu. Não era um simples parar no meio da favela, mas era um parar no meio da favela para ser visto. E não há mal algum em se parar no meio de uma favela, quando se nasceu em uma. As pessoas olhavam das janelas de seus barracos e cochichavam entre si: eram pessoas comuns; duras, mas comuns. Mas havia algo de especial naquele menino parado no meio da favela, parado bem no meio do pátio mais largo naquele emaranhado de barracos formando um labirinto de leptospirose e loucura.
Um por um, os loucos se aproximaram do menino. Até mesmo a doida que vivia amarrada jogada no chão de terra batida de seu barraco, ela estava a caminho. Parecia feliz. Pareciam todos felizes, todos os loucos. Sorriam com o corpo todo, alguns. Estavam excitados e os outros começaram a sentir uma inquietação lá dentro, perto de onde o suco ralo era extraído nas idas e vindas da vida. Não era medo. Era um quase-medo. Não havia motivos para se temer, eram apenas os olhos deles todos que se aterrorizavam, claro, o que viam não era bonito. Estavam todos os loucos ali, no pátio da favela, reverenciando os meninos.
O mais novo não entendeu. Nem depois ele entendeu. Foram dois anos e nada mais, dois anos para que ele explorasse seu jardim secreto, descobrisse um pomar carregado de frutos carnudos e compreendesse que seu lá-dentro era doce como um pomar infinito de macieiras. Não houve guia nessa descoberta, nada além da curiosidade. O que é que tem se se der um passo além do precipício? Há mais vida, ele descobriu. É preciso matar pra sobreviver, e ele matou o menino. É preciso matar o menino pra se ser homem.
O menino, o ainda menino, o mais velho: ele entendeu a reunião dos loucos-varridos. Ele sentiu o quase-medo se expandindo, aquecendo o ar do pátio e se transformando em quase-pavor. O medo já estava instaurado. E medo de quê? medo do lá-dentro. Seu irmão não entendeu: saiu correndo. Nunca mais o viu. Não havia o que se compreender, no final das contas. O compreender, muitas vezes, é o fugir do sentir. E o menino sentiu, todos sentiram o quase-pavor crescendo dentro de seus pomares. Ele que, aos dezesseis, tinha um deserto dentro de si, era poeira nos olhos de todos. Sua loucura era uma afronta --- sua loucura era uma bênção.
Todos taparam os olhos quando os loucos fugiram para o mundo. Pareciam ratos, todos eles, que, logo, tomariam a cidade. Mas não. Mergulharam no esgoto e não saíram mais dali. Morreram na zona de conforto, todos. Curados da insensatez e no esgoto, como havia de ser.
Foto: por Boogie
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