domingo, 25 de fevereiro de 2007

Salto


Não se entregaria mais a ninguém daquela forma. Não tinha interesse em manter vínculos firmes com a força da sua fértil imaginação. E tudo isto era para o próprio instante, para o já. Sem amolecer e deixar para o todo-poderoso depois.
Ela se sentia esquisita, um peso dentro da alma. Era este o preço a pagar pela sua bravura? sentir uma força divina a empurrando para o chão, de dentro para fora? Tinha medo de deuses e das coisas todas que não conseguia ver. Era do tipo que precisava ver. Uma menina cabeça, com os dois pesinhos número 36 firmes no chão.
Quando tomou a decisão que mudaria sua vida, este peso ela interpretou como medo. Era o medo de pular do alto do edifício. Morreria ela do coração antes de se partir em pedaços no chão?

Ela sabia que não. E então pulou.
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Imagem por: Nicolas Wagner

Nicolas


Nicolas olhou ao redor, até sentir-se seguro de que não havia às vistas um olhar atento que poderia vir a constrangê-lo. Olhou o mar, a imensidão do mar. Sentiu o mar acariciando o meio de suas pernas. A maré subia aos poucos. Recuava. O vai-vem da vida.

O garoto sentia o sexo de todo um oceano. E queria rolar ali, feito bichano. Rolar na areia de encontro ao mar. Mergulhar no mar de corpo inteiro. Afogar-se, se tivesse sorte.

Que deus havia ali, no fundo escuro daquele mar?

Nicolas estava excitado. Ele tinha quinze anos. Era um garoto branco, loiro. Alto para a idade. Suas pernas eram longas; seus pés, delicados. Suas mãos eram imensas, magras e cruéis. Mãos que acariciam um lado negro da Vida que um garoto branco e loiro de classe média não devia conhecer. Um garoto de família religiosa e direita. Mamãe cuidava da casa enquanto papai dava duro no trabalho. Nicolas era grato.

A idéia de pertencer a uma família tradicional o excitava. Aos quinze anos, tinha plena consciência do que fazer com sua indiscutível beleza.

Virou o rosto para seu pai. Ali estava tudo --- tudo o que sentia conhecer de fato, e um tudo mais amplo, um tudo que lhe fugia.

Estava ali, estirado sob o quente do sol, um tudo que lhe precedia.


Imagem por: Jared Buckhiester

sábado, 24 de fevereiro de 2007

A mensagem


Você acreditaria em mim, se eu dissesse que ele brilhava no escuro? Ele brilhava no escuro! Suas pequeninas mãos eram mágicas, sabia? Ele fazia um movimento todo pomposo, muito característico daquela personalidade incrível ---- Ele era leonino, não era? Qual era mesmo o ascendente? Sei que tinha Lua em Escorpião. Imagine só, Lua em Escorpião!

Ele me falou muito a seu respeito, Ana. Coisas muito doces, muito coloridas também. Sim, coloridas, isso mesmo. Memórias, lembranças de infância. Uma vida de menino. O menino João. Nome lindo que lhe demos: João. Ele era tão João! Tão simples e encantador. Tão único, um brilho todo seu.

Por favor, não chore! Ana, ele te amava muito. Eu não sei explicar, com toda a limitação dessa nossa língua, o que aconteceu com ele. Você já parou pra pensar no quão limitados somos todos nós, cidadãos, gente comum, gente de bem - e mesmo os maus, mesmo eles! - você já parou pra pensar no quão limitados somos todos para nos expressarmos? Isso justifica a arte? Isso justifica a arte. João é um artista, entende? Ele que me explicou tudo o que hoje sei. Ele me ensinou, sem dizer uma única palavra. Ele não emitiu som algum. Mas aquele olhar... Mas aquele corpo de menino, e as mãos pequeninas cortando o ar, a luz, todo o índigo que nascia dele e o sangue branco que nele escorria do mundo. Ele sangrava branco, Ana.

Não se assuste. Não me olhe assim, como se eu estivesse louco. Eu não durmo há alguns dias, talvez isso justifique minha aparência. Sei que tenho olheiras muito feias. Mas você sabe, João tem olheiras ainda mais profundas, embora viva em completo estado de sono. "Estado-de-sono"... Não é uma expressão bonita, esta? Já eu não durmo, estou na contramão ---- Como sempre estive, é verdade. Mas você também, Ana. Você não está com a melhor das aparências. Não que isso importe. Você brilha uma luz escarlate encantadora, e isto é tudo. É por isso que te amo. Mas João, ele tem estas olheiras profundas, de um roxo que não há igual, sob aqueles olhos esverdeados, os pontinhos pretos na íris, que ele dizia fazer com que o mundo parecesse todo uma grande farra. Uma grande farra, Ana!

A verdade, a tão importante verdade tem muito a ver com esta nossa relação. Eu, você e João - Pai, mãe e filho. A verdade, ele me contou. Disse com os olhos e eu entendi. A íris se apertou como uma fenda e a sobrancelha arqueou-se. A menina-do-olho pequenina perdeu-se na minha. E daí toda a verdade. Ele quer que eu lhe diga, Ana, porque é essencial que você entenda e nos siga. O caminho é longo, é preciso fazer as malas. Levaremos só o que for indispensável, sem luxos, uma mala de mão basta. O caminho é longo e definitivo. Mas qual verdade? Eu preciso dizer ---- Ana, a verdade toda é que.
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Imagem: por Robert Flynt

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

O fim de um casamento burro

- Quem sabe eu não precise mais de você?
- Mas quem é que termina uma relação desse jeito?
- Que jeito?
- "Quem sabe eu não precise mais de você".
- Qual o problema?
- Você não afirmou nada, não?
- Como assim?

Ela ficou impaciente.

- "Como assim"? Você me pergunta "como assim"?

Silêncio.

- Venha cá.
- Não, ainda não terminamos.

Ela estava realmente irritada.

- Eu não quero mais terminar nosso casamento.
- Você vê o quão volúvel é?
- Você só é crítica demais...
- Eu sou crítica demais?
- E cheia de perguntas retóricas...
- Eu...?

Silenciou-se. Era verdade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

assim estamos


era assim, você dentro de mim

não pude evitar em desvendar, ou ao menos tentar desvendar essa verdade toda em mim. eu não sei ao certo do que eu estou falando, eu sei. eu não sei se falo o que genuinamente sinto ou o que gostaria de sentir. enfim, ainda estou no bê-a-bá da metafísica, mesmo sabendo que dela não preciso e nunca precisarei. não é metafísica que falta. ela excede

eu quero me livrar dela, me livrar da metafísica

pensei, assim, com você dentro de mim, que poderia dar o meu primeiro passo voluntário nesta minha vida apagada, cor-de-bege, cor-de-opaco. até hoje, foi a vida - a mão de deus, o sabor de mais um pecado e toda sorte de acontecimentos independentes de mim - até hoje foi a vida quem me empurou para frente. esta maldita. se não tropecei, foi sorte. ou talvez toda esta confusão que te fiz presenciar, talvez ela seja na verdade a lama. meu rosto afundado na lama

se assim for, sei que preciso me banhar na lama

sei que não gosto deste seu olhar, e isto é tudo. eu não gosto quando me encara assim, como se eu fosse menor do que você. como se você pudesse me aninhar em seus braços enormes e me carregar aí pela vida. eu não aceito ajuda! eu só quero seu amor. e não, ele em nada ajuda. na verdade ele atrapalha. mas eu o aceito mesmo assim

você há de convir que eu preciso de alguma distração nessa minha vida...

imagem: albert van westing

O beijo menininho


Você chegou bem perto, mas dali de onde eu estava não dava pra enxergar direito. Você chegou bem perto e fez soar sua voz adocicada há poucos centímetros da minha face. Eu pude sentir seu hálito. Eu estremeci com seu hálito. Como um círculo de fumaça, meticulosamente bufado em minha boca. Eu quis beijar sua boca. Mas eu não sou dono das minhas ações. Eu corei, você sorriu. Delicado, você sorriu e pôs sua mão esquerda no meu rosto. Segurou firme, os dedos atrás da minha orelha. Minha orelha queimava.
Eu disse assim:
- O que é isso que está acontecendo?
E você:
- Não está acontecendo nada.
Eu reconheci seu sorriso malandro. Ah, esse sorriso!
- Está, você sabe que está.
- Você sabe o que eu quero.
Eu estremeci mais uma vez.
Você me deu o meu primeiro beijo.


Imagem: Francis Bacon

Porta-Retrato


Já fui muito bom com as palavras. Não sei o que aconteceu. Tudo – sim, tudo – me parece arte abstrata. As palavras são, assim como tudo o que sinto, sujeitas aos mais incríveis contorcionismos, mas o dois mais dois ainda é quatro e quero sempre chegar a uma conclusão antes do ponto final da mais ridícula frase... Engraçado que eu não escreva mais nada.

Sempre houve certa expectativa depositada sobre mim. Por parte de quem, não sei. De deus? Pois é bom que ele exista mesmo, então. Mesmo que eu tenha que pagar dolorosamente por todos os meus pecados, é bom que ele exista e me faça grande-artista-funcionário-público-do-Banco-do-Brasil. Eu agradeceria todas as noites, antes de dormir, numa reza tête-à-tête moderadamente sonolenta. Só para garantir.

Eu sou feliz, sim. E meus amigos, as aparências enganam... Será que alguém realmente me sente? Será que, se por ventura, um amigo me tomasse nos braços e amasse meu corpo, os meus gemidos, as luzes, os roxos, os vermelhos, as dormências e todos os pontos de exclamação, eu entenderia? Me faria sentir, será? Não gosto de parecer vadia, ultimamente está na moda agir feito vadia-drogada-sem-futuro, mas não, não quero. Eu vejo as cores e os contornos, nítidos. Não vejo um futuro, mas é porque morrerei cedo. Uma cartomante me disse. E eu acredito nessas coisas. Eu acredito nas pessoas. Eu acredito na amizade. Na inocência. Nas coisas boas todas. Eu acredito que dois mais dois pode ser cinco, eventualmente, mas eu não conto pra ninguém. Aí está todo o mistério e ele deve ser mantido vivo, ainda que mistério.

Eu só quero uma suíte com hidromassagem.
Quando ele vem?

Imagem: Auto-Retrato