
Você acreditaria em mim, se eu dissesse que ele brilhava no escuro? Ele brilhava no escuro! Suas pequeninas mãos eram mágicas, sabia? Ele fazia um movimento todo pomposo, muito característico daquela personalidade incrível ---- Ele era leonino, não era? Qual era mesmo o ascendente? Sei que tinha Lua em Escorpião. Imagine só, Lua em Escorpião!
Ele me falou muito a seu respeito, Ana. Coisas muito doces, muito coloridas também. Sim, coloridas, isso mesmo. Memórias, lembranças de infância. Uma vida de menino. O menino João. Nome lindo que lhe demos: João. Ele era tão João! Tão simples e encantador. Tão único, um brilho todo seu.
Por favor, não chore! Ana, ele te amava muito. Eu não sei explicar, com toda a limitação dessa nossa língua, o que aconteceu com ele. Você já parou pra pensar no quão limitados somos todos nós, cidadãos, gente comum, gente de bem - e mesmo os maus, mesmo eles! - você já parou pra pensar no quão limitados somos todos para nos expressarmos? Isso justifica a arte? Isso justifica a arte. João é um artista, entende? Ele que me explicou tudo o que hoje sei. Ele me ensinou, sem dizer uma única palavra. Ele não emitiu som algum. Mas aquele olhar... Mas aquele corpo de menino, e as mãos pequeninas cortando o ar, a luz, todo o índigo que nascia dele e o sangue branco que nele escorria do mundo. Ele sangrava branco, Ana.
Não se assuste. Não me olhe assim, como se eu estivesse louco. Eu não durmo há alguns dias, talvez isso justifique minha aparência. Sei que tenho olheiras muito feias. Mas você sabe, João tem olheiras ainda mais profundas, embora viva em completo estado de sono. "Estado-de-sono"... Não é uma expressão bonita, esta? Já eu não durmo, estou na contramão ---- Como sempre estive, é verdade. Mas você também, Ana. Você não está com a melhor das aparências. Não que isso importe. Você brilha uma luz escarlate encantadora, e isto é tudo. É por isso que te amo. Mas João, ele tem estas olheiras profundas, de um roxo que não há igual, sob aqueles olhos esverdeados, os pontinhos pretos na íris, que ele dizia fazer com que o mundo parecesse todo uma grande farra. Uma grande farra, Ana!
A verdade, a tão importante verdade tem muito a ver com esta nossa relação. Eu, você e João - Pai, mãe e filho. A verdade, ele me contou. Disse com os olhos e eu entendi. A íris se apertou como uma fenda e a sobrancelha arqueou-se. A menina-do-olho pequenina perdeu-se na minha. E daí toda a verdade. Ele quer que eu lhe diga, Ana, porque é essencial que você entenda e nos siga. O caminho é longo, é preciso fazer as malas. Levaremos só o que for indispensável, sem luxos, uma mala de mão basta. O caminho é longo e definitivo. Mas qual verdade? Eu preciso dizer ---- Ana, a verdade toda é que.
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Imagem: por Robert Flynt