quinta-feira, 23 de julho de 2009


My body's a temple.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Humor mórbido

O elevador finalmente chega, cheio. Pessoas conversando, rindo. Satisfeitas. Fim do expediente. Lotação máxima: 8 pessoas, 640 quilos. Ninguém parece notar a presença dela. O que sente a obesa mórbida dentro de um elevador, tão pequeno, eu não sei. Nunca saberei. Para ela existem as escadas, mas se as utilizasse certamente não teria esta forma. Deformaria-se em peles frouxas criando feridas, que ela esconderia com panos coloridos e seu sorriso amável. Esconderijos, ela os conhece bem. Mas eu nunca saberei o que a obesa mórbida sente num elevador lotado. Ela tampouco compreende o riso de seus colegas. De que riem, dela? Sente-se inconveniente, “que dia, hein?”, e todos riem. Tenta alcançar o botão, mas o braço parece não ter força para sustentar-se. A dor nas costas impede o corpo de esgueirar-se, ela desiste. Ninguém repara na obesa mórbida, incapaz de pedir uma gentileza. Térreo: todos descem, menos ela. Sozinha na cabine, ela se aproxima do painel e aperta o botão da sobreloja. A boca aberta, demente. Dispneia. Há tempo de sobra para uma ou duas lágrimas, até o reabrir das portas.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O medo


Desde sempre Ana Clara soube que seus pais não eram seus, mas preferiu ficar calada porque ah!, difícil, tão difícil. Uma preguiça aguda. Desde sempre ela soube de muitas dessas coisas que ninguém desconfia. Uma menina especial, tão órfã! O que seria de mim sem meus pais de mentira? Seria uma coisa qualquer, como hoje, mas diferente. Sem previsões futuras. Cousas futuras, como diria Aires. Ora, cousas futuras não nos pertencem. Tampouco um passado de poderia-ter-sido. Preguiça, preguiça agudíssima de previsões, de bla-bla-blás. É tanta metafísica, tantas leis que regem este mundo anárquico que nem sei. Melhor contentar-me com o que tenho, estes pais de mentira. Desde sempre soube. Uma nuvem de poeira cobrindo um passado remoto, de sair do berço. Um espasmo no coração, sempre sentia. Ana Clara era nome de desde quando? Preguiça de saber, ser era coisa distante, cousa futura... Desde já, preguiça.

A carne na panela começa a queimar, Ana Clara ouve o barulho que o fogo faz. Apressa-se, desliga o fogo. Desliga logo o gás. Nunca se sabe do que essa gente é capaz.

Imagem: Elijah James