sexta-feira, 9 de março de 2007

O Beco

Sonhei com a sombra de uma alma gêmea. Era num beco e, como em todo beco, havia um cão sarnento. Alguma coisa guiava meus pés ao encontro da derradeira mordida. Meu cupido goza, estripa.

O cão tinha a mandíbula tensa, os olhos fixos nos meus. Estava apaixonado? Fez-se príncipe lindo e me pediu cafuné. Agachou-se perto de um latão de lixo, sobre a calçada suja com suas titicas. Eram titicas de galinha.

Estava encantado, era um príncipe encantado. Ajoelhei-me e me fiz dele. Ele não me consumiu carnalmente. Ele sequer me desejava. Coloquei-me, contudo, em posição desconfortável. Fui iludido pelo cupido estripador.

O cão não me devia amor nenhum, mas me amava. Não me devia atenção alguma, mas me dava. Devia!, devia me desejar! Mas não desejava. A vírgula, o detalhe... Eu não o tinha! Cupido venceu. Conseguiu estripar, dilacerar o meu coração.

E aqui, agachado, com os joelhos sujos da titica dele, me ponho a lamentar. Quando o terei aos meus pés? Quando minha inocente vingança se fará possível? Não!, não o quero Mal. Mas se o que sinto é triste e dolorido, é também tudo o que queria ter com ele compartilhado.

A minha solitária melancolia eu vomito. E a eterna noite no beco, cedo ou tarde, se fará dia.


Imagem por Nicolas Wagner

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