
Rita tinha vinte-e-três. Ela vestia um longo dourado, impróprio para qualquer ocasião. Estava metida em alguma situação esquisita, era o que qualquer um diria se olhasse superficialmente para aquela cara grande, espaçada e abatida de quem apanha do marido. Carregava consigo um ar bizarro, quase como se desfilasse por aí sonâmbula. Ela tinha a cara do sono. Era Rita seu nome e ela se sentia linda sereia naquele bairro de nome Balneário, perto da represa Guarapiranga.
Admirar Rita era de rir. Não que normalmente já não chamasse atenção. Aqueles olhos tristes faziam os mais sensíveis choramingarem um grasno piedoso. Ela parecia um abutre, decerto, mas todos viam que era uma feia assim feita pela vida, pelos maus tratos que sabe-se lá por que sofria!
Chico era seu homem. Marido no altar, não nas demonstrações diárias de conjecturável afeto para com aquela criatura que atendia a seus chamados luxuriosos como uma mulher apaixonada. Toda noite faziam amor e era como se Rita perdesse um dente. Quando não lhe sobrou mais dentes e pouca coisa havia para ser tomada, ele procurou outra mulher.
Diziam os vizinhos que ele era casado há anos com uma mulher distinta, uma dessas damas de classe média que vivem em casa de alvenaria no meio de barracos que destelham com ventos que só deviam levantar as saias das meninas. E Rita se virava como podia, mas não se prostituía: sem graça como era, temia apanhar para que os amantes frustrados tivessem como exercitar certa dose de masculinidade.
Mas Rita ria e vestia dourado! Era noite de sábado e sua cabeleira loura brilhava com o passar dos carros. Ela era preta, mas seus cachos seguiam a moda sem fazer de Rita menos preta. Ela se dizia preta rindo uma boca grande e bonita. Seus gestos todos eram sinceros, e toda e qualquer manifestação emocional executável com seu corpo esguio era digno de admiração! Rita correndo e sorrindo, a cabeleira crespa dançando na noite e aquela boca de gente honesta rindo alto era de se admirar!
Estava feliz, Rita, porque era dia de festa num salão chique três bairros distantes dali. Sua honestidade lhe valeu o convite, partido da boca de sua chefe, doutora Bianca, dermatologista de pelo menos três das louras que apresentam programas de TV. Aconteceu quatro meses atrás, mas ela sabia desde quando apareceu para trabalhar no casarão, pelo menos um ano antes. Indignava-lhe suspeitar do patrão. O choque de assistir à cena fez com que Rita corresse até a primeira igreja evangélica que encontrou e chorasse desesperada para os fiéis. Um espetáculo! Chamaram-no de pederasta, chamaram-no de demônio, mas Rita sentia apenas a iminência de uma deliciosa gargalhada censurada em respeito aos mais afortunados.
Rita relembrava o fim da história. Sua inocência era medida em seus movimentos infantis – passinhos curtos pela calçada agora mal iluminada. O ponto de ônibus estava logo ali, enquanto ela revivia a sensação, talvez a mais excitante de sua vida, de relatar à patroa que seu marido, aquele senhor cheio de bons modos, a traía com o jardineiro. Rita conhecia os esconderijos das casas de seus patrões. Não deixou de se admirar quando Bianca exclamou, translúcida, que nunca tinha visto o quartinho da edícula. Afinal, pra que serve uma edícula quando se vive em Pinheiros?
Quando o ônibus chegou, Rita estava ansiosa – detestava se atrasar. Foi no ônibus, sentada no espaço para deficientes, que tomou consciência, pela primeira vez em sua vida, de que as ruas daquele bairro lhe davam medo. Ela olhava através do vidro pichado aquelas ruas, seus meandros e as tripas das pessoas: uma mulher pendurando roupas na janela, dois homens dentro de um bar, um jovem esguio com ar de viciado, os carros, o colorido dos muros, a aleatoriedade daquelas combinações, daquela vida...
Rita nunca mais dormiu no escuro. Estava a caminho da festa de sua patroa e compreendeu, finalmente, que aquele era um caminho sem volta. Assim, sorrindo, aceitou. Rita era mulher de aceitar as coisas. E isto era bom. Isto era tudo o que tinha.
Imagem por Robert Mapplethorpe
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