sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sejamos felizes em Higienópolis!


Olhei para o alto e a observei cair na rua. Ouvi seu grito – socorro –, mas estava triste demais para dar-lhe a mão. A tristeza me faz egoísta, você sabe, e não tenho tempo para estas exclamações e as interrogações e as reticências. Eu vivo de vírgula em vírgula, medroso que sou. Não a socorri, mas a observei até o último grunhido e me emocionei pela oportunidade maravilhosa que este deus me deu de estar vivo e saudável enquanto a pobre sucumbia aos olhares todos. Senti uma pontada de alegria contida, envergonhada. Grunhi eu mesmo um riso que veio da boca do diabo e sorri olhos de malícia: os mesmos olhos seus, meu bem.

O mal dessa história vai além desta suposta indiferença minha – questionável, bem questionável. O mal está em nós e eu preciso me mudar daqui, deste beco sem saída. Vamos ser felizes em Higienópolis, amor! Compremos um belo apartamento num andar bem alto, bem alto. Sintamos o ar invadir nossas narinas com ternura, bênção destas árvores e destes pássaros e dos cachorros latindo felizes lá embaixo! Sejamos de fato indiferentes. Eu estou cansado de sentir vergonha de quem sou e destas vírgulas escorregando goela abaixo. Estou interessado nas exclamações e creio necessitar de algumas interrogações, para não pensarem que somos loucos ou sóbrios demais.

Venha me beijar, querido! Aquele canzarrão que vem desgovernado é meu destino. A pobre já não está mais ali na rua. Podemos sair e fingir que somos mais. Muito mais, agora.

Foto: Auto-Retrato

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Oh! Oh! Oh!


Uma semana que talvez decida um ano. Eu adoro a sensação de estar perdido, no fundo. Eu sei que gosto de uma brincadeirinha perigosa, aqui e ali, vez ou outra... Mas onde, afinal, estão as chaves? O que é que pega fogo dentro de algum lugar dentro de mim? Muitas obrigações e poucos prazeres fazem de qualquer um hedonista. Ou não? O que diria Gilberto Gil? E onde, por Deus, estarão as malditas chaves?

Talvez eu me decida um lugar gostoso. Durante uma semana, para o ano que vem.

Imagem por August Macke - Gemüsefelder, 1911

domingo, 20 de maio de 2007

“não seja”


Eu tinha dois caminhos a seguir, dentre tantos outros possíveis. Tinha comigo uma dose certa de esperança e certo excesso de humildade – esta titica que eu precisava para suportar minha própria miséria.

“Oh, mas você veio!”, entre risos e dentes e obturações escuras. “Não faz tanto tempo assim, Ana Maria”, com certo desconforto – três beijos no rosto. “Faz tempo é que estou nessa estrada”, eu disse para um “Você sempre esteve lá”.

Do que ela estava falando, eu nunca soube ao certo. Mas parecia certo.

Eu tinha algumas pedras nos sapatos e aquela parecia a hora certa de me livrar delas todas. Ou melhor, de boa parte delas. É bom ser prudente, sempre, afinal de contas, o Canzarrão estava sedento, e eu não queria encontrá-lo mais uma vez, num beco que não o meu, não queria encontrá-lo num buraco qualquer. E como, se Ana estava comigo?

“Eu lhe chamei para alertá-lo” - pois então eu estava em perigo - “Não é algo que você deva temer, mas combater”. ---- Aquilo era demais para mim. Preferia a certeza dos dentes cravados no meu pescoço à desgraça de me arrastar com uma perna dependurada por aí...

Então o gorjeio de algum bicho por detrás das cortinas felpudas, eu escutei com toda atenção. Ela me observava nesse ínterim com presteza, mas eu sentia queimar alguma coisa dentro de nós. Como se aquele fosse um momento muito importante, mas só como se fosse, porque Ana Maria era pura superficialidade. Tinha aqueles trejeitos dramáticos, sempre com o lenço preto prendendo bem os cabelos cacheados, e a cara larga toda exposta, em rugas aqui, botox ali... Não muito diferente de mim.

Era um homem calvo aos vinte e seis. Não sabia dançar e não sabia foder e não sabia ainda que seria tudo sempre igual sempre foi. Tinha, aos vinte e seis, apenas uma dose certa de esperança e certo excesso de humildade - esta titica que eu precisava para entender minha própria figura. Eu me via Ana e me via Cão, mas também me via eu mesmo, mesmo vexado, tapando o sexo medíocre quando nu para não me resfriar. Era essa figura que invita o riso e os dedos a riste, gargalhadas que me eram facadas.

Aos trinta e três minhas fotografias rodavam o mundo. Foi através do meu único auto-retrato – aos vinte e nove, com doze quilos além do peso e com um calibre 69 no rabo – foi com este auto-retrato que Ana Maria veio a mim, de volta a mim. E não importa de onde surgiu Ana, o brotar de relações assim não necessariamente têm algo de especial. A gente inventa tudo - e a gente se acostuma.

Ana veio a mim quando mil novecentos e dois mil e sete. Daquele encontro, despedimo-nos com um afago manso. Um roçar de mãos em nossos rostos e expressões calculadas para o que não fosse óbvio. Despedimo-nos assim, com aquele alerta amigo e raso --- fui-me embora assim. E nada mais aconteceu comigo.

Nada mais me ocorreu desde que Ana veio me visitar.


Imagens: Barbara Kruger

terça-feira, 17 de abril de 2007

Deserto


O deserto tem uma umidade
que é preciso encontrar de novo.

Imagem: Robert Flynt

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Os meninos podiam ter o mundo


Os meninos podiam ter o mundo, mas não era o bastante. Haviam, antes, de ter a si mesmos. Isso fodia com o dia deles todos, porque não eram meninos que gostavam de pensar, de refletir, de olhar para dentro. Se olhavam para dentro, era para um dentro já quase fora, aquele dentro que dá até vergonha de dizer fazer parte de alguma essência, de tão - como dizer? - de tão ralo o suco que se extrai desse pontinho minúsculo de fruto.

Precisavam sair dali, daquela zona de conforto entre o desespero e a morte. Era uma sensação de anestesia tão latente, que os meninos já não voltavam mais para casa. Perambulavam pelas ruas da cidade e se metiam em becos e vielas que pareciam pertencer a um universo paralelo, a um universo do qual eles não queriam fazer parte. Mas faziam. A sensação de ser metido no meio de um universo de insanidade era mesmo de enlouquecer qualquer um, até mesmo aqueles dois meninos que já haviam visto de tudo em 16 anos de vida. Dezesseis um, treze o outro.

Mas como escapar da solidão quando já não se tem nem mãe nem pai? nem tutor, nem porra nenhuma? Não parecia haver escapatória: a derradeira mordida já se anunciava nas pequenas coisas de cada dia.

Quando o menino mais velho parou no meio da favela, o mais novo não entendeu. Não era um simples parar no meio da favela, mas era um parar no meio da favela para ser visto. E não há mal algum em se parar no meio de uma favela, quando se nasceu em uma. As pessoas olhavam das janelas de seus barracos e cochichavam entre si: eram pessoas comuns; duras, mas comuns. Mas havia algo de especial naquele menino parado no meio da favela, parado bem no meio do pátio mais largo naquele emaranhado de barracos formando um labirinto de leptospirose e loucura.

Um por um, os loucos se aproximaram do menino. Até mesmo a doida que vivia amarrada jogada no chão de terra batida de seu barraco, ela estava a caminho. Parecia feliz. Pareciam todos felizes, todos os loucos. Sorriam com o corpo todo, alguns. Estavam excitados e os outros começaram a sentir uma inquietação lá dentro, perto de onde o suco ralo era extraído nas idas e vindas da vida. Não era medo. Era um quase-medo. Não havia motivos para se temer, eram apenas os olhos deles todos que se aterrorizavam, claro, o que viam não era bonito. Estavam todos os loucos ali, no pátio da favela, reverenciando os meninos.

O mais novo não entendeu. Nem depois ele entendeu. Foram dois anos e nada mais, dois anos para que ele explorasse seu jardim secreto, descobrisse um pomar carregado de frutos carnudos e compreendesse que seu lá-dentro era doce como um pomar infinito de macieiras. Não houve guia nessa descoberta, nada além da curiosidade. O que é que tem se se der um passo além do precipício? Há mais vida, ele descobriu. É preciso matar pra sobreviver, e ele matou o menino. É preciso matar o menino pra se ser homem.

O menino, o ainda menino, o mais velho: ele entendeu a reunião dos loucos-varridos. Ele sentiu o quase-medo se expandindo, aquecendo o ar do pátio e se transformando em quase-pavor. O medo já estava instaurado. E medo de quê? medo do lá-dentro. Seu irmão não entendeu: saiu correndo. Nunca mais o viu. Não havia o que se compreender, no final das contas. O compreender, muitas vezes, é o fugir do sentir. E o menino sentiu, todos sentiram o quase-pavor crescendo dentro de seus pomares. Ele que, aos dezesseis, tinha um deserto dentro de si, era poeira nos olhos de todos. Sua loucura era uma afronta --- sua loucura era uma bênção.

Todos taparam os olhos quando os loucos fugiram para o mundo. Pareciam ratos, todos eles, que, logo, tomariam a cidade. Mas não. Mergulharam no esgoto e não saíram mais dali. Morreram na zona de conforto, todos. Curados da insensatez e no esgoto, como havia de ser.

Foto: por Boogie

Encontro-cego

- Você ainda quer me foder?
- Pode ser, quanto você mede?

terça-feira, 27 de março de 2007

Spark

"if the Divine master plan is
perfection
maybe next I’ll give Judas a try"

(tori amos)

quarta-feira, 21 de março de 2007

Mosquitos têm sangue vermelho

Ele andava por aí, cabisbaixo como de costume, enquanto ela vinha de um outro lado - na mesma calçada - ela vinha de um outro lado, que ia além da visão que ele tinha. Mas ela via. De alguma forma, ela via. Foi aí que tropeçou nele propositalmente e o fez perguntar, no susto, tão atordoado como se nem lembrasse seu nome:

- Você vem sempre aqui?
- Só de vez em quando, mas já nos encontramos aqui antes.
- É, não é?
- É.

(pausa)

- E então, a gente não vai trepar?
- Ah, sim. Pode ser.
- "Pode ser"?
- É, como quiser.
- Podemos começar quebrando um pouco o gelo.
- Como da outra vez?
- Desculpe, eu não me lembro.
- Eu imagino, você estava drogado.
- Eu, drogado? Eu nunca usei drogas.
- Então você se fazia de drogado.
- Sim, isso é possível.
- E você era bem mais jovem. Sua aparência... Você parecia James Dean.
- É verdade. Não que o tempo tenha sido ingrato comigo. Se não fosse pelo acidente, minha aparência seria outra.
- Acidente?
- Sim, queimei meu rosto enquanto fritava um hambúrguer.
- Meu Deus!
- A frigideira pegou fogo, meu rosto ficou em chamas. Sofri três cirurgias plásticas, tenho problemas respiratórios desde então, mas pelo menos minha visão não foi prejudicada.
- Nossa, se você não tivesse me falado, não teria reparado.
- Obrigado.
- Mas eu continuo com uma aparência jovem.
- Você tem o que? Vinte e cinco?
- Trinta e cinco.
- Está muito bem.
- Obrigada... Sinta meu peito. Não é durinho?

Ele toca o seio dela.

- Aperte.

Ele aperta o seio dela.

- Sim, bem durinho. E que mamilo pequeno!

(gemido)

- E sensível.
- Você quer fazer aqui mesmo?
- Eu faria em qualquer lugar, com você.
- Eu estou desempregado. Moro num cômodo aqui perto. Não é o melhor dos lugares, mas teremos alguma privacidade.
- Eu não quero privacidade.
- Então não sei como faremos.
- Bota o pau pra fora.
- Não.
- Não?
- Não aqui.
- Acho que meu celular está tocando. Espera um pouco.

Ela se vira de costas e fuça sua bolsa. Ele olha a bunda dura dela, apertada no shorts jeans. Ela atende ao telefone e fica eufórica. Ele observa a nádega esquerda tremer de excitação. O pé esquerdo dando tapinhas no chão. Aquele tamanco, aquelas unhas vermelhas. Uma tatuagem desbotada no calcanhar. Uma borboleta? Ela grita coisas desconexas, meio demente, ele pensa, e ela desliga com um "eu te amo".

- Eu preciso ir, agora.
- Não, não vá. Podemos fazer aqui.
- Eu não quero mais.
- Não faça isso comigo.
- Eu não sou uma puta, sabia?
- Eu sei.
- Tchau, então. Foi um prazer revê-lo.
- O prazer foi meu.

Ela atravessa a rua, correndo. Começa a chover, ela abre o guarda-chuva. Olha para trás. Sorri. Some numa esquina. Ele acende um cigarro. Deixa a chuva molhar seu rosto. Olha para o chão. E lá está... A chave!

- Que porra é essa?

Ele joga o cigarro fora, pega a chave. É uma chave dourada, pequena. Não parece ser chave que abra algo que preste, mas ele a guarda mesmo assim. Não existem tantos segredos assim, numa esquina como aquela.

domingo, 18 de março de 2007

As cabines

Ele se enchia do ar que o abraçava. Num ritmo alucinado. Enquanto a vida o circundava por todos os lados, ele estava só. E era só. Questão de tempo para entender que aqueles braços magros que, gentilmente, acariciavam seu ventre e seu rosto e seus cabelos ralos, aqueles braços com aqueles dedos longos e gelados, aqueles calos, nunca mais.

Solidão o circundava por todos os lados naquela sala. A luz vermelha da cabine estava acesa. Eram pelo menos sete exatamente iguais. Homens de rostos duros por todo lado. Havia tristeza em todo mundo.

A noite o absorvia enquanto enchia os pulmões com um cigarro. Algo para saciar-lhe a boca, aquela volúpia. Longe de luzes vermelhas e de rostos duros, na avenida havia certa poesia. Algo como aquele menino lhe diria, ao pé do ouvido. Um elogio bonito de se ouvir, de inevitável sorriso de dentes irregulares. Fariam amor. Fingiriam ser felizes. Um sinal de fogo. Uma fumaça encobrindo o teto do seu quarto...

Aquela presença o assombraria por anos, ele pensava, avistando a Culpa a esperá-lo na primeira esquina.

Foto por Bruce LaBruce

quinta-feira, 15 de março de 2007

Rita


Rita tinha vinte-e-três. Ela vestia um longo dourado, impróprio para qualquer ocasião. Estava metida em alguma situação esquisita, era o que qualquer um diria se olhasse superficialmente para aquela cara grande, espaçada e abatida de quem apanha do marido. Carregava consigo um ar bizarro, quase como se desfilasse por aí sonâmbula. Ela tinha a cara do sono. Era Rita seu nome e ela se sentia linda sereia naquele bairro de nome Balneário, perto da represa Guarapiranga.

Admirar Rita era de rir. Não que normalmente já não chamasse atenção. Aqueles olhos tristes faziam os mais sensíveis choramingarem um grasno piedoso. Ela parecia um abutre, decerto, mas todos viam que era uma feia assim feita pela vida, pelos maus tratos que sabe-se lá por que sofria!

Chico era seu homem. Marido no altar, não nas demonstrações diárias de conjecturável afeto para com aquela criatura que atendia a seus chamados luxuriosos como uma mulher apaixonada. Toda noite faziam amor e era como se Rita perdesse um dente. Quando não lhe sobrou mais dentes e pouca coisa havia para ser tomada, ele procurou outra mulher.

Diziam os vizinhos que ele era casado há anos com uma mulher distinta, uma dessas damas de classe média que vivem em casa de alvenaria no meio de barracos que destelham com ventos que só deviam levantar as saias das meninas. E Rita se virava como podia, mas não se prostituía: sem graça como era, temia apanhar para que os amantes frustrados tivessem como exercitar certa dose de masculinidade.

Mas Rita ria e vestia dourado! Era noite de sábado e sua cabeleira loura brilhava com o passar dos carros. Ela era preta, mas seus cachos seguiam a moda sem fazer de Rita menos preta. Ela se dizia preta rindo uma boca grande e bonita. Seus gestos todos eram sinceros, e toda e qualquer manifestação emocional executável com seu corpo esguio era digno de admiração! Rita correndo e sorrindo, a cabeleira crespa dançando na noite e aquela boca de gente honesta rindo alto era de se admirar!

Estava feliz, Rita, porque era dia de festa num salão chique três bairros distantes dali. Sua honestidade lhe valeu o convite, partido da boca de sua chefe, doutora Bianca, dermatologista de pelo menos três das louras que apresentam programas de TV. Aconteceu quatro meses atrás, mas ela sabia desde quando apareceu para trabalhar no casarão, pelo menos um ano antes. Indignava-lhe suspeitar do patrão. O choque de assistir à cena fez com que Rita corresse até a primeira igreja evangélica que encontrou e chorasse desesperada para os fiéis. Um espetáculo! Chamaram-no de pederasta, chamaram-no de demônio, mas Rita sentia apenas a iminência de uma deliciosa gargalhada censurada em respeito aos mais afortunados.

Rita relembrava o fim da história. Sua inocência era medida em seus movimentos infantis – passinhos curtos pela calçada agora mal iluminada. O ponto de ônibus estava logo ali, enquanto ela revivia a sensação, talvez a mais excitante de sua vida, de relatar à patroa que seu marido, aquele senhor cheio de bons modos, a traía com o jardineiro. Rita conhecia os esconderijos das casas de seus patrões. Não deixou de se admirar quando Bianca exclamou, translúcida, que nunca tinha visto o quartinho da edícula. Afinal, pra que serve uma edícula quando se vive em Pinheiros?

Quando o ônibus chegou, Rita estava ansiosa – detestava se atrasar. Foi no ônibus, sentada no espaço para deficientes, que tomou consciência, pela primeira vez em sua vida, de que as ruas daquele bairro lhe davam medo. Ela olhava através do vidro pichado aquelas ruas, seus meandros e as tripas das pessoas: uma mulher pendurando roupas na janela, dois homens dentro de um bar, um jovem esguio com ar de viciado, os carros, o colorido dos muros, a aleatoriedade daquelas combinações, daquela vida...

Rita nunca mais dormiu no escuro. Estava a caminho da festa de sua patroa e compreendeu, finalmente, que aquele era um caminho sem volta. Assim, sorrindo, aceitou. Rita era mulher de aceitar as coisas. E isto era bom. Isto era tudo o que tinha.

Imagem por Robert Mapplethorpe

domingo, 11 de março de 2007

Lúcio



Deixe-me apresentar. Sou Lúcio. Da vida eu não faço nada que mereça crédito. Eu só fodo. Todos os meus passos terminam dentro do rabo de alguém, e parecia tudo bem até hoje. Parecia tudo bem até a volta para casa, com o gosto da rola de gente que eu não conheço o rosto, esse gosto azedo de rola em minha boca.

Não tive uma criação religiosa. Não sinto culpa, não é isso o que sinto. Eu sinto um vazio permanente que eu não sei se deriva de minha promiscuidade. Não sei nem se sou promíscuo. Eu sei que busco alguma coisa --- eu busco o amor e a beleza das coisas. Que coisas? As coisas todas que estão no beco --- é lá que eu procuro. Eu acho que o amor é orgânico e o sinto vivo enquanto fodo. Ou esta é só uma desculpa? Eu sinto uma rola grossa abrindo espaço entre minhas nádegas, cutucando meu ego no fundo do meu cu. É isso: eu sou meu ego e eu não sei quem sou.

A verdade é que não sou escritor. Peço perdão ao leitor que perde seu tempo com estas palavras de um infeliz libertino: eu sei que o sexo assim, exposto na sua cara, está ultrapassado. Mas como usar metáforas e eufemismos quando tudo o que me vem na cabeça é o cheiro da merda? Um cheiro azedo de merda e porra. Ou é assim que cheira uma trepada, ou este é meu perfume natural...

Já fodi assim outras vezes. Outros dias. Mas hoje aconteceu de eu pensar em amor-burguês. Hoje dei para idealizar este amor e imaginar a sensação de ser tratado como uma beleza frágil, que pode se partir em mil pedacinhos. Uma peça rara, dessas que se coloca em destaque numa sala de estar. Dessas que se exibe com muito orgulho, entre objetos de menor valor. Hoje dei para pensar que este sou eu: uma peça rara e delicada, que exige cuidados. Um falo de vidro? Não, acho que não...

Olhei meu corpo no espelho a pouco e fiquei encantado. Como dizer? fiquei encantado mesmo... Vi uma beleza pura ali, refletida. Um corpo cheirando à lubrificante. Um pau doendo. Um cu latejando --- o gosto em minha boca, o cheiro que sai do meu rabo, tudo me deixa com ânsia --- eu preciso parar de beber --- tudo me deixa com ânsia, mas por trás das marcas no corpo, há uma beleza. Há beleza em garotos que procuram não-sei-o-que e se oferecem, fáceis, aos outros. Há uma fragilidade nessa entrega, uma dor-no-peito que me faz chorar! Um garoto exposto assim entre pessoas nuas, procurando beleza nestas pessoas nuas e no que elas fazem com seus corpos, este garoto está perdido. E eis a beleza toda!, na minha cara, diante do espelho.

Diante do espelho, pela primeira vez, acredito ter chegado perto de uma definição. Aquele era eu: um moleque em pé diante do susto. Com as pernas bambas – e um sorriso triste – era um moleque. Nada mais que um moleque que – finalmente! – entendeu sua sina.


Imagens: auto-retratos

sexta-feira, 9 de março de 2007

O Beco

Sonhei com a sombra de uma alma gêmea. Era num beco e, como em todo beco, havia um cão sarnento. Alguma coisa guiava meus pés ao encontro da derradeira mordida. Meu cupido goza, estripa.

O cão tinha a mandíbula tensa, os olhos fixos nos meus. Estava apaixonado? Fez-se príncipe lindo e me pediu cafuné. Agachou-se perto de um latão de lixo, sobre a calçada suja com suas titicas. Eram titicas de galinha.

Estava encantado, era um príncipe encantado. Ajoelhei-me e me fiz dele. Ele não me consumiu carnalmente. Ele sequer me desejava. Coloquei-me, contudo, em posição desconfortável. Fui iludido pelo cupido estripador.

O cão não me devia amor nenhum, mas me amava. Não me devia atenção alguma, mas me dava. Devia!, devia me desejar! Mas não desejava. A vírgula, o detalhe... Eu não o tinha! Cupido venceu. Conseguiu estripar, dilacerar o meu coração.

E aqui, agachado, com os joelhos sujos da titica dele, me ponho a lamentar. Quando o terei aos meus pés? Quando minha inocente vingança se fará possível? Não!, não o quero Mal. Mas se o que sinto é triste e dolorido, é também tudo o que queria ter com ele compartilhado.

A minha solitária melancolia eu vomito. E a eterna noite no beco, cedo ou tarde, se fará dia.


Imagem por Nicolas Wagner

quarta-feira, 7 de março de 2007

Aurélio


Primeiro ele pensou que não, que não queria significado algum. Nada muito complicado, eu digo. Aí, ele se sentou em frente ao computador e pensou. Foi interrompido pela chuva. Caía uma chuva forte e um sentimento de desespero se apossou dele. É porque não tenho mãe, ele pensou. Não fazia mesmo sentido. Não relampejava, não havia trovões, mas muita água. E estava escuro, devia ser já nove horas da noite, e era uma quinta-feira. Dia qualquer, uma quinta-feira. Especialmente para quem tem todos os dias iguais. Acordado sempre às sete. No trabalho às oito. De volta para casa às dezoito. Algumas horas de televisão e de comida congelada. Sete horas de sono. E finais de semana loucos.

Um significado. Ele procurou pelo dicionário, no armário cheio de livros. A maioria já lido e relido, com anotações em letra delicada no rodapé. Tudo a lápis, para não estragar. Não encontrou o velho dicionário. Resolveu abrir a janela e observar a chuva. No escuro mal se observa a chuva. A iluminação da rua era mínima e morar no décimo andar não ajudava. Talvez fosse bom assim. Ele sentia a chuva com intensidade tão maior quando não conseguia enxergar nada! Enxergar sempre foi desanimador, na realidade. Mas ele não queria enxergar porra nenhuma àquela hora da noite. Qualquer coisa que despertasse algum sentimento, como, o sexo. Ou o adultério. Aborto? Abandono? Nada disso interessava naquele momento. Seria dolorido demais. Ademais, ele não queria pensar a respeito das vidas todas que vivia em imaginação. Deixaria a cargo de sua intuição. Fechou a janela, ligou o som. Colocou The Doors. Oh, The Doors!... Break on through to the other side?

Não, não queria ouvir The Doors. Colocou o CD da Perla.

Reabriu o Word e começou a escrever. Qualquer assunto era assunto para vidas branco-néon como a dele. Então por que não falar de amor?

Ela estava sozinha. No escritório, então. Mas por que no escritório, afinal? Não é dos lugares mais íntimos, ou é? Era exatamente esta a questão. Não era, e devia ser angustiante passar por momentos de verdadeira epifania fora da cama. E era mesmo. Mas ali, no escritório, enquanto a chuva batia forte nas vidraças, ela compreendeu. E poderia ter morrido, que partiria feliz, saudando até mesmo todas as meninas gêmeas mortas que lhe sorririam durante todo o longo caminho rumo ao seu destino. Ela não era do tipo que acreditava em Céu e em Inferno, mas acreditava em destino. Acreditava em Deus. Fazia-lhe sentido pensar fazer sentido a vida pós-túmulo, e esta era daquelas coisas incontestáveis.

Não, não estava bom. O que ele queria dizer? Apagou tudo. Mudou a fonte. Verdana, que tal? Acho que os livros – os melhores livros, evidentemente – adotam esta fonte, ele pensou. Lembrou-se de uma Clarice que lera há uns dois anos, em Verdana. Em papel novo amarelado. Sempre pensava em sorvetes de creme quando lia em papel novo amarelado. E foi aí que.

Ela sentou-se ao lado da moça de cabelos castanhos e cochichou alguma coisa. No ouvido da moça de cabelos castanhos. Aí a moça se enrijeceu toda, ergueu os ombros que quase encontraram suas orelhas e riu um riso desconfortável – desconcertante. Ela então pegou as mãos dessa mesma moça, com muita delicadeza e sorriu dois dentes de leite. Dois dentinhos de leite!

- Onde está sua irmã?

Silêncio. O sorriso havia se partido.

- Onde está sua irmãzinha, meu anjo?

O início de um choro se anunciava em alguma onomatopéia tosca de criança chorona. E ela sabia, ali, que havia encontrado algo de valor.

Havia, por Deus, de fazer sentido? Ela podia rir até se despedaçar. Não importava mais. Porque não havia sentido algum em nada nesse mundo.

Imagem por Robert Flynt

domingo, 4 de março de 2007

A esperança escondida


Sou a razão em sua vida
Nada mais que uma nota em sua agenda
Um capítulo em sua vida?


Somos juntos muito mais que tudo
aquilo que o mundo me oferece.
Somos muito mesmo quando se esquece,
dá as costas e vai, sem se despedir.


Sou a luz da lua, o beco, a esquina.
Uma espécie de coruja
em sua noite pitchalina.


E talvez você venha a ser também
a esperança escondida...
Num adeus?

Imagem: Magritte - "The Lovers", 1928

Caio.


Caio.
Libido, cheiro, ácido, balas, doce - muito doce -, rosas com espinhos, sangue, dor, pinto, cu, porra, foda, boquete, ativo, passivo, versátil, fisting, glory hole, Keith Haring, kama sutra, dark room, motel barato, fast fuck, exibicionismo, porra na cara, cheiro de porra, jockstrap, bondage, orgia, macho, fêmea, Tom of Finland, punk, pés, sovaco, papai, banheirão, bolas, pêlos, tapa, mordida, cuspe, cuspe na cara, cuspe no cu, sem-borracha, couro, coturno, sauna, gangbang, cunhado, Michael Love, bear, teen, nervo, ménage-à-trois, DP, Terry Richardson, língua, cunete, beijo na boca, michê, sex shop, Jesus Cristo, skinhead, negão, Trianon, mamilos, piercing, tattoo, Nico Puig, coxa, bunda, mãos, cabelo, orelhas, pescoço, correntes, Autorama, cu piscando, rola babando, porra no cabelo, mijo, merda, suor e o azedo...

Caio era tudo mais o azedo. E acho que só.

Pic: Andreas Fux

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Salto


Não se entregaria mais a ninguém daquela forma. Não tinha interesse em manter vínculos firmes com a força da sua fértil imaginação. E tudo isto era para o próprio instante, para o já. Sem amolecer e deixar para o todo-poderoso depois.
Ela se sentia esquisita, um peso dentro da alma. Era este o preço a pagar pela sua bravura? sentir uma força divina a empurrando para o chão, de dentro para fora? Tinha medo de deuses e das coisas todas que não conseguia ver. Era do tipo que precisava ver. Uma menina cabeça, com os dois pesinhos número 36 firmes no chão.
Quando tomou a decisão que mudaria sua vida, este peso ela interpretou como medo. Era o medo de pular do alto do edifício. Morreria ela do coração antes de se partir em pedaços no chão?

Ela sabia que não. E então pulou.
___________________
Imagem por: Nicolas Wagner

Nicolas


Nicolas olhou ao redor, até sentir-se seguro de que não havia às vistas um olhar atento que poderia vir a constrangê-lo. Olhou o mar, a imensidão do mar. Sentiu o mar acariciando o meio de suas pernas. A maré subia aos poucos. Recuava. O vai-vem da vida.

O garoto sentia o sexo de todo um oceano. E queria rolar ali, feito bichano. Rolar na areia de encontro ao mar. Mergulhar no mar de corpo inteiro. Afogar-se, se tivesse sorte.

Que deus havia ali, no fundo escuro daquele mar?

Nicolas estava excitado. Ele tinha quinze anos. Era um garoto branco, loiro. Alto para a idade. Suas pernas eram longas; seus pés, delicados. Suas mãos eram imensas, magras e cruéis. Mãos que acariciam um lado negro da Vida que um garoto branco e loiro de classe média não devia conhecer. Um garoto de família religiosa e direita. Mamãe cuidava da casa enquanto papai dava duro no trabalho. Nicolas era grato.

A idéia de pertencer a uma família tradicional o excitava. Aos quinze anos, tinha plena consciência do que fazer com sua indiscutível beleza.

Virou o rosto para seu pai. Ali estava tudo --- tudo o que sentia conhecer de fato, e um tudo mais amplo, um tudo que lhe fugia.

Estava ali, estirado sob o quente do sol, um tudo que lhe precedia.


Imagem por: Jared Buckhiester

sábado, 24 de fevereiro de 2007

A mensagem


Você acreditaria em mim, se eu dissesse que ele brilhava no escuro? Ele brilhava no escuro! Suas pequeninas mãos eram mágicas, sabia? Ele fazia um movimento todo pomposo, muito característico daquela personalidade incrível ---- Ele era leonino, não era? Qual era mesmo o ascendente? Sei que tinha Lua em Escorpião. Imagine só, Lua em Escorpião!

Ele me falou muito a seu respeito, Ana. Coisas muito doces, muito coloridas também. Sim, coloridas, isso mesmo. Memórias, lembranças de infância. Uma vida de menino. O menino João. Nome lindo que lhe demos: João. Ele era tão João! Tão simples e encantador. Tão único, um brilho todo seu.

Por favor, não chore! Ana, ele te amava muito. Eu não sei explicar, com toda a limitação dessa nossa língua, o que aconteceu com ele. Você já parou pra pensar no quão limitados somos todos nós, cidadãos, gente comum, gente de bem - e mesmo os maus, mesmo eles! - você já parou pra pensar no quão limitados somos todos para nos expressarmos? Isso justifica a arte? Isso justifica a arte. João é um artista, entende? Ele que me explicou tudo o que hoje sei. Ele me ensinou, sem dizer uma única palavra. Ele não emitiu som algum. Mas aquele olhar... Mas aquele corpo de menino, e as mãos pequeninas cortando o ar, a luz, todo o índigo que nascia dele e o sangue branco que nele escorria do mundo. Ele sangrava branco, Ana.

Não se assuste. Não me olhe assim, como se eu estivesse louco. Eu não durmo há alguns dias, talvez isso justifique minha aparência. Sei que tenho olheiras muito feias. Mas você sabe, João tem olheiras ainda mais profundas, embora viva em completo estado de sono. "Estado-de-sono"... Não é uma expressão bonita, esta? Já eu não durmo, estou na contramão ---- Como sempre estive, é verdade. Mas você também, Ana. Você não está com a melhor das aparências. Não que isso importe. Você brilha uma luz escarlate encantadora, e isto é tudo. É por isso que te amo. Mas João, ele tem estas olheiras profundas, de um roxo que não há igual, sob aqueles olhos esverdeados, os pontinhos pretos na íris, que ele dizia fazer com que o mundo parecesse todo uma grande farra. Uma grande farra, Ana!

A verdade, a tão importante verdade tem muito a ver com esta nossa relação. Eu, você e João - Pai, mãe e filho. A verdade, ele me contou. Disse com os olhos e eu entendi. A íris se apertou como uma fenda e a sobrancelha arqueou-se. A menina-do-olho pequenina perdeu-se na minha. E daí toda a verdade. Ele quer que eu lhe diga, Ana, porque é essencial que você entenda e nos siga. O caminho é longo, é preciso fazer as malas. Levaremos só o que for indispensável, sem luxos, uma mala de mão basta. O caminho é longo e definitivo. Mas qual verdade? Eu preciso dizer ---- Ana, a verdade toda é que.
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Imagem: por Robert Flynt

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

O fim de um casamento burro

- Quem sabe eu não precise mais de você?
- Mas quem é que termina uma relação desse jeito?
- Que jeito?
- "Quem sabe eu não precise mais de você".
- Qual o problema?
- Você não afirmou nada, não?
- Como assim?

Ela ficou impaciente.

- "Como assim"? Você me pergunta "como assim"?

Silêncio.

- Venha cá.
- Não, ainda não terminamos.

Ela estava realmente irritada.

- Eu não quero mais terminar nosso casamento.
- Você vê o quão volúvel é?
- Você só é crítica demais...
- Eu sou crítica demais?
- E cheia de perguntas retóricas...
- Eu...?

Silenciou-se. Era verdade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

assim estamos


era assim, você dentro de mim

não pude evitar em desvendar, ou ao menos tentar desvendar essa verdade toda em mim. eu não sei ao certo do que eu estou falando, eu sei. eu não sei se falo o que genuinamente sinto ou o que gostaria de sentir. enfim, ainda estou no bê-a-bá da metafísica, mesmo sabendo que dela não preciso e nunca precisarei. não é metafísica que falta. ela excede

eu quero me livrar dela, me livrar da metafísica

pensei, assim, com você dentro de mim, que poderia dar o meu primeiro passo voluntário nesta minha vida apagada, cor-de-bege, cor-de-opaco. até hoje, foi a vida - a mão de deus, o sabor de mais um pecado e toda sorte de acontecimentos independentes de mim - até hoje foi a vida quem me empurou para frente. esta maldita. se não tropecei, foi sorte. ou talvez toda esta confusão que te fiz presenciar, talvez ela seja na verdade a lama. meu rosto afundado na lama

se assim for, sei que preciso me banhar na lama

sei que não gosto deste seu olhar, e isto é tudo. eu não gosto quando me encara assim, como se eu fosse menor do que você. como se você pudesse me aninhar em seus braços enormes e me carregar aí pela vida. eu não aceito ajuda! eu só quero seu amor. e não, ele em nada ajuda. na verdade ele atrapalha. mas eu o aceito mesmo assim

você há de convir que eu preciso de alguma distração nessa minha vida...

imagem: albert van westing

O beijo menininho


Você chegou bem perto, mas dali de onde eu estava não dava pra enxergar direito. Você chegou bem perto e fez soar sua voz adocicada há poucos centímetros da minha face. Eu pude sentir seu hálito. Eu estremeci com seu hálito. Como um círculo de fumaça, meticulosamente bufado em minha boca. Eu quis beijar sua boca. Mas eu não sou dono das minhas ações. Eu corei, você sorriu. Delicado, você sorriu e pôs sua mão esquerda no meu rosto. Segurou firme, os dedos atrás da minha orelha. Minha orelha queimava.
Eu disse assim:
- O que é isso que está acontecendo?
E você:
- Não está acontecendo nada.
Eu reconheci seu sorriso malandro. Ah, esse sorriso!
- Está, você sabe que está.
- Você sabe o que eu quero.
Eu estremeci mais uma vez.
Você me deu o meu primeiro beijo.


Imagem: Francis Bacon

Porta-Retrato


Já fui muito bom com as palavras. Não sei o que aconteceu. Tudo – sim, tudo – me parece arte abstrata. As palavras são, assim como tudo o que sinto, sujeitas aos mais incríveis contorcionismos, mas o dois mais dois ainda é quatro e quero sempre chegar a uma conclusão antes do ponto final da mais ridícula frase... Engraçado que eu não escreva mais nada.

Sempre houve certa expectativa depositada sobre mim. Por parte de quem, não sei. De deus? Pois é bom que ele exista mesmo, então. Mesmo que eu tenha que pagar dolorosamente por todos os meus pecados, é bom que ele exista e me faça grande-artista-funcionário-público-do-Banco-do-Brasil. Eu agradeceria todas as noites, antes de dormir, numa reza tête-à-tête moderadamente sonolenta. Só para garantir.

Eu sou feliz, sim. E meus amigos, as aparências enganam... Será que alguém realmente me sente? Será que, se por ventura, um amigo me tomasse nos braços e amasse meu corpo, os meus gemidos, as luzes, os roxos, os vermelhos, as dormências e todos os pontos de exclamação, eu entenderia? Me faria sentir, será? Não gosto de parecer vadia, ultimamente está na moda agir feito vadia-drogada-sem-futuro, mas não, não quero. Eu vejo as cores e os contornos, nítidos. Não vejo um futuro, mas é porque morrerei cedo. Uma cartomante me disse. E eu acredito nessas coisas. Eu acredito nas pessoas. Eu acredito na amizade. Na inocência. Nas coisas boas todas. Eu acredito que dois mais dois pode ser cinco, eventualmente, mas eu não conto pra ninguém. Aí está todo o mistério e ele deve ser mantido vivo, ainda que mistério.

Eu só quero uma suíte com hidromassagem.
Quando ele vem?

Imagem: Auto-Retrato